“Este livro busca resgatar a memória da reforma urbana no Brasil, desde as primeiras iniciativas para controlar os aluguéis, na chamada era Vargas, com destaque para o Seminário de Habitação e Reforma Urbana de 1963, até as experiências mais recentes relacionadas à implementação do Estatuto da Cidade e, em especial, aos planos diretores no início do século XXI.

O sentido que temos do conceito de reforma urbana é amplo, relacionado às tentativas de regulamentar normas e intervenções urbanas visando garantir o direito à cidade e à habitação, na perspectiva de fazer valer a função social da propriedade e de limitar o direito absoluto de propriedade.

O projeto surgiu da necessidade de sistematizar um amplo conjunto de pesquisas, atividades profissionais e ações políticas realizado pelos integrantes da equipe envolvida na realização deste livro, apresentando um fio de continuidade que aponta a contribuição decisiva dos arquitetos e urbanistas nesse processo.

A oportunidade de concretizar esse projeto surgiu com o lançamento de um edital pelo CAU/SP em 2017 dirigido a organizações não governamentais, que possibilitava a edição de publicações e realizações de seminários. Assim, obtivemos o apoio do Conselho de Arquitetura e Urbanismo, através do Termo de Fomento no 005/2017 firmado entre a Associação Casa da Cidade e o CAU/SP.

Esta publicação não tem a pretensão de esgotar o tema; ao contrário, busca sistematizar um conjunto de pesquisas e reflexões, hoje disperso em diferentes locais, com o objetivo de criar um material de referência básico que possa permitir o aprofundamento das investigações e novas perspectivas analíticas.

Além desta introdução e da conclusão, o livro apresenta cinco capítulos organizados de acordo com uma periodização definida conforme os principais marcos que representam pontos de inflexão no processo de implementação da reforma urbana no Brasil: a criação e a extinção do Banco Nacional de Habitação (BNH) e do Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (Serfhau); as mobilizações pela introdução de instrumentos de reforma urbana na redemocratização; a aprovação do Estatuto da Cidade e a criação do Ministério das Cidades.

O primeiro capítulo, voltado a iniciativas na era Vargas, trata do período pré-1964, quando o golpe militar promoveu importantes alterações no enfrentamento da questão urbana, com a criação do BNH e o Serfhau.

O capítulo situa as ações pioneiras para enfrentar a questão urbana e habitacional no Brasil ainda no Estado Novo (1937-1945), como a Lei do Inquilinato (1942), que congelou os aluguéis e proibiu os despejos, primeira norma brasileira que restringe o direito de propriedade com o objetivo, ao menos aparente, de garantir o direito à habitação.

O foco principal desse capítulo é dedicado às reformas de base realizadas durante o curto governo João Goulart (1961-1964), momento em que se realiza o Seminário de Habitação e Reforma Urbana que, muitos consideram o marco fundador da reforma urbana no Brasil.

O segundo capítulo trata do período do regime militar (1964-1985), que praticamente coincide com a criação e extinção do Banco Nacional de Habitação e com a atuação do Serviço Federal de Habitação e Urbanismo e de seu sucessor, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano (CNDU).

Trata-se de momento em que o Estado brasileiro criou uma estrutura institucional robusta para enfrentar a questão habitacional e urbana, tanto em nível nacional como nos Estados e municípios; desenvolveu ou financiou intervenções de grande porte nas cidades, como a implantação de grandes conjuntos habitacionais e redes de infraestrutura urbana; e apoiou a elaboração de planos diretores.

Nesse capítulo é dado grande destaque para o Projeto de Lei de Desenvolvimento Urbano, que o governo militar elaborou e enviou para o Congresso Nacional em 1983. Malgrado o caráter conservador do regime, esse projeto, que resultou dos debates promovidos por uma competente tecnocracia estatal, era bastante avançado e, caso houvesse sido aprovado, teria criado um arcabouço legal inédito de cumprimento da função social da propriedade.

O terceiro capítulo trata do período de redemocratização do país, a partir da década de 1980 e até a aprovação do Estatuto da Cidade em 2001. Muitos chamam esse período de décadas perdidas, mas, na verdade, foi um tempo de muita esperança, construção de utopias e extremamente rico em termos de mobilização da sociedade, na perspectiva de conquistar direitos sociais e urbanos, e de formulação de propostas de políticas públicas alternativas, que criaram novos paradigmas de gestão.

O capítulo mostra que, nessas décadas, a sociedade civil e o Legislativo passaram a ter maior protagonismo na formulação de propostas para enfrentar a questão urbana. Ao contrário do período anterior, quando as ações estiveram fortemente concentradas na mão do Estado, mais especificamente do governo federal, na redemocratização as iniciativas mais significativas partiram da sociedade civil, de movimentos organizados e do Legislativo, em especial o Congresso Nacional.

Ganham grande destaque a proposição da emenda de iniciativa popular da Reforma Urbana, encaminhada ao Congresso Constituinte (1987), e o projeto de lei também de iniciativa popular referente ao Fundo Nacional de Moradia (1991), propostas essas que geraram campanhas nacionais de mobilização popular.

E, a partir dessas iniciativas, o Congresso Nacional se tornou um fórum efetivo de debates em torno da questão urbana, seja durante a Constituinte seja ao longo dos anos 1990, quando tramitou o projeto de lei que gerou o Estatuto da Cidade.

Nesse capítulo também são apontadas iniciativas relevantes de reforma urbana a cargo de governos municipais durante essa época em que a seção de Política Urbana da Constituição ainda não estava regulamentada, como a criação das primeiras zonas especiais de interesse social, as tentativas pioneiras de cobrança do solo criado e de regularização e urbanização de favelas.

O quarto capítulo é voltado ao período mais recente, cujo marco referencial foi a criação do Ministério das Cidades. Trata-se da fase em que surgiu uma nova estrutura da administração federal, encarregada de articular as políticas urbanas setoriais (habitação, saneamento, mobilidade e gestão territorial), de criar novos marcos regulatórios para garantir o direito à cidade e de implementar o Estatuto da Cidade.

A implementação do Estatuto da Cidade requeria a elaboração de planos diretores que incorporassem os novos instrumentos de reforma urbana criados por esse regulamento federal. Para tanto, o Ministério das Cidades criou a campanha nacional pelos Plano Diretores Participativos, que além de firmar convênios com municípios para apoiar financeiramente a elaboração de planos diretores participativos, a serem realizados de acordo com a metodologia definida pelo MCidades, desenvolveu programas e cursos de capacitação de técnicos e lideranças comunitárias visando garantir a plena participação da sociedade nesse processo.

O capítulo sintetiza as principais iniciativas nesse período (2003-2014) em prol do direito à cidade, como os marcos regulatórios e os programas de habitação, saneamento e mobilidade, mostrando a desarticulação entre as propostas da reforma urbana e a implementação de projetos setoriais.

O quinto capítulo busca refletir sobre a elaboração participativa do Plano Diretor Estratégico do município de São Paulo (2002), assim como sobre sua revisão (2014), um dos primeiros planos aprovados que incorporaram todos os instrumentos do Estatuto da Cidade. Busca-se observar uma aplicação concreta do estatuto em uma cidade que é a maior do país e marcada por um complexo jogo de interesses e uma forte mobilização social.

Esse capítulo aborda o processo de debate e participação social, as formas de aplicação dos instrumentos e os conflitos em torno deles, e o projeto de cidade que orientou suas diretrizes e os resultados já obtidos.

O intuito é mostrar que, apesar das dificuldades em um contexto urbano, econômico e político complexo, foi possível avançar em direção ao direito à cidade e à reforma urbana. No entanto, para que esse processo se consolide de fato, é preciso um enorme esforço para superar os entraves, garantir sua implementação e evitar os retrocessos.

A conclusão traz uma reflexão sobre os desafios futuros. Com a atual crise econômica, fiscal e política no país, onde são evidentes as tentativas de se reduzir direitos sociais conquistados na Constituição de 1988, pode-se dizer que, após trinta anos de avanços contínuos, um ciclo se encerrou abrindo um período de incertezas. Nesse contexto, é necessário apontar novas perspectivas que tragam luz sobre os caminhos a trilhar no enfrentamento da questão urbana.

Essa conclusão é um fechamento que justifica a própria realização deste livro. Com certeza, muito se avançou em mais de cinquenta anos de mobilizações e elaborações técnicas sobre a Reforma Urbana. Mas, para continuar avançando, é necessário sistematizar as experiências realizadas e olhar com otimismo para o futuro, malgrado as dificuldades atuais.

Para apontar novos horizontes, deve-se resgatar os processos que nos levaram até aqui, fazendo uma avaliação crítica dos erros e acertos do passado e vislumbrando os próximos passos a serem dados.” (BONDUKI, 2017)

BONDUKI, Nabil (org.). A luta pela reforma urbana no Brasil: do Seminário de Habitação e Reforma Urbana ao Plano Diretor de São Paulo. 1. ed. São Paulo: Instituto Casa da Cidade, 2017. 244 p. ISBN 978-85-54325-00-8.


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